Essa é a história de um cadáver. Tentarei desenrolá-la sem complicações,
afinal, nem todo cadáver tem uma história, logo, quando um se sobressai no vale
de ossos secos torna-se notório e
alguém precisa registrar. Acompanhei tudo à espreita e tentei depurar
alguns fatos que, à distância, pareciam emaranhados demais a muito entulho.
Havia um cadáver que vagava lentamente entre indivíduos que, por falta
de humanidade, assemelhavam-se a seres sem vida também. Ele caminhava sem
recordação, sem memórias, sem identidade e, apesar de não ter um coração a
pulsar, parecia inquieto, insatisfeito, mas resignava-se à sua condição.
Certa feita, em meio à sua falta de vida rotineira, ele depara-se com algo
que viria mudar sua inexistência. Quando trilhava seus lentos passos em direção
ao nada de costume, ele se enxergou através dos olhos de alguém que, parado, lhe
olhava. Grande foi o choque e logo uma brusca perturbação tomou conta de si.
Confuso, mas intensamente movido por sua inquietação, tratou de buscar conhecer
o ser que lhe observara. Sua história começa a mudar aqui.
É comum aos vivos invadir o terreno
das emoções de alguém e transformá-lo conforme sua vontade e desejos sem,
geralmente, importar-se com o que acontecerá à emoção sorrateada. Muitas vezes,
o ser invadido não é nem notado, pois o que vem a ser prioridade é a
necessidade do invasor que tem por sinônimo de identidade mau agouro. Por
conseguinte, tal ação egoísta traz como resultado a desgraça de um caminhante
inocente. Mas, como um cadáver tomaria ciência dessa realidade?
E assim é que o amigo cadáver, conduzido por uma tamanha agitação foi
ter com o ser que embaraçou seu ambiente sepulcral. Encantou-se com a novidade!
Permitiu a si um processo que lhe traria uma metamorfose. Com estímulos e
persistência o ser desconhecido, aquele que lhe cravara os olhos no seu olhar
perdido, foi removendo as sujeiras e trazendo-lhe a vida. Com ela, a sensação,
o entusiasmo, o desejo foram tomando conta de suas entranhas e, subitamente,
sentiu que as correntes que prendiam o coração foram quebradas uma a uma;
sentiu, no conjunto dos ossos, o coração pulsar e, de repente, sentiu amor.
Sentiu a dor!
Foi assim que aconteceu o despertar de um cadáver! Passou a ter ternura,
dedicação e logo aprendeu a amar. Comprometeu-se com o amor e entregou-se ao
ser amado. Cada batida do seu coração era como uma nota suave que harmonizava uma
canção à amada; sua nova vida passou a ser expressão de amor àquela que lhe
descobriu a raiz das emoções.
Entretanto, é do humano a emoção efêmera; a insensibilidade que não
permite materializar os bons sentimentos; a rigidez do coração que não sabe doar
vez ao amor e, por ser assim, a amada partiu. Não disse adeus, não se despediu,
não se fez entendida, não deixou nada a entender. Sumiu.
Mergulhado nessa verdade atroz, o amigo que acabara de ser despertado
sente-se arrebentado como as correntes que lhe prendia o coração. Sente amargar
em seu âmago a ausência do ser amado e com o coração mais solitário que a lua
no mar sombrio, lamenta ter sido despertado. Contemplativo percebeu que era
melhor ser frio, não ter emoção, ser vazio. Concluiu que era melhor ser
cadáver, mas compreendeu que era humano e a proximidade era incrível.
(Liliana
Almeida)