sexta-feira, 29 de novembro de 2013

“É melhor ser surdo ou escutar”?


          Um casal de vizinhos, que na labuta diária, costuma travar longos e intermináveis diálogos, começou, no dia de hoje, logo cedo.
          Uma manhã linda e ensolarada de verão, aquelas que o calor do sol só aquece e alimenta sem causar enfado, o casal, de repente, começa a dialogar; diálogos que são ouvidos ao som de alta voz; às vezes, parece mais que estão brigando um com o outro; entretanto, tenho a impressão que a fala alta faz parte da cultura do casal.

          A mulher que, parece lavar roupa – ideia suposta a partir do barulho incomodador que ouço de uma máquina – faz uma reclamação do esposo por conta de sua estadia fixa e permanente em casa. Parece falar sozinha, reclamar da sorte. Mas, de repente, mais ao fundo, ouve-se a voz do marido a dizer.

- Mulher, como vou trabalhar? tu sabe bem que não posso. O médico mesmo me disse.
- Claro que pode!  - falou a mulher. Mas não sei o que tu quer. Vive reclamando da vida, enchendo o saco, mas não tem coragem de pegar nem um “bico” porque quer ganhar sempre mais do que merece; mas isso é desculpa pra não trabalhar, seu burro!

          O marido, com voz exaltada, retruca dizendo que burro seria se cobrasse pouco pelo serviço que supostamente prestaria e insiste repetindo que não tem condições de trabalhar por ser debilitado fisicamente. Nessa constante, marido e mulher começam a acusar um ao outro e, já faltando repertório para a discussão, o marido começa a elencar as doenças que possui para reafirmar a invalidez que o impossibilita de trabalhar.

          Por conseguinte, ouve-se a disputa de quem carrega mais doenças. O marido diz que possui o tornozelo deslocado, para justificar que não trabalha por conta disso; a mulher grita que tem deslocada a clavícula e que, apesar disso, não para de trabalhar.

Marido: Tenho tendinite na mão direita
Mulher: E tu sabe que tenho má circulação
Marido: Minha pressão tá sempre alta
Mulher: Alta é tua preguiça. E eu que tenho diabete?
Marido: Isso não é nada perto da minha gastrite.
Mulher: É... tu tem tudo de ruim mesmo. E enquanto isso, eu é que coloco dentro de casa o pão.

          Depois deste embate sem vencedor, o silêncio compadece-se de mim e então, por alguns momentos reina. Ouve-se, muito a distância, o som do coração insistindo em bater. Bom, ainda há vida. E eu, que calado observo tudo, fico aqui a refletir: “é melhor ser surdo ou escutar”?!


Liliana Almeida

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Longe de mim


   

           Certa manhã, aquelas que sinalizam a chegada do inverno, acordei atordoada e ao reparar no relógio percebi que estava atrasada. Acelerei meus passos ao banheiro e no caminho acabei tropeçando e cai. Ainda antes da costumeira irritação, parei e permaneci sentada ao chão. Por alguns instantes fiquei quieta, imóvel, olhando o nada e foi então que percebi.

      Com a pressa do tempo e as obrigações mundanas tudo foi se dando rápido demais! Os acontecimentos parecem que circulam entre nós mais rápido que a velocidade da luz e, assim, passamos despercebidos; das coisas, das pessoas e de nós. Lemos, vemos ou comentamos, mas tudo visita as nossas emoções de modo superficial. Chega nela e nela mesmo se dissolve; não permitimos, mesmo inconscientemente, que suba ao coração. Tantas coisas roubam nossa atenção, mas estamos desacostumando a emoção da entrega, da afeição, dos detalhes que definem as relações. Será que é tempo que nos falta para perceber?

         A modernidade do tempo presente nos induz à dureza do coração e estamos nos adaptando facilmente e silenciosamente à insensibilidade. Quase não nos permitimos a graça de observar e sentir: sentir o sol, sentir o frio, o amor, o desamor, a alegria, a tristeza. Parece-me que a aceleração do tempo levou consigo as nossas sensações. Levou de mim os sentimentos!

         Hoje me olhei. Percebi! Descobri que não sinto nada, nem de bom nem de ruim. Percebi que se a manhã está fria ou quente, não faz diferença; não enxergo nelas nem boniteza nem horrorosidade. Percebi que acabei por descuidar-se de mim mesma e me esqueci. Meu coração encontra-se longe de mim; não sei aonde vim parar. Onde é esse lugar? Por favor, alguém me dê um coração, que esse já não bate nem apanha; alguma alma, mesmo que penada, me empreste suas penas; eu já não sinto amor, nem dor; já não sinto nada.”



(Liliana Almeida)

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O pecado que habita em mim






      Cresci em um ambiente que se falava muito sobre pecado e punição. As melhores e mais bonitas coisas que enxergava na vida eram-me proibidas, pois delas (diziam) procedia o mal. Bem assim a vida me foi apresentada e menos por obediência e mais por medo, tentei seguir os mandamentos que foram inventados por algum ser ignorante e frustrado.

      Vi passar diante dos meus olhos os ciclos da vida; neles refletiam a sobrecarga de receios, medos, perturbações, traumas. Bem assim cresci. Mente carregada. Sobrevivente de histórias cansadas e, sobretudo, mal contadas. Alma que lutava para conseguir o olhar de Deus, mas sempre barrada por a falta de esperança uma vez que do pecado não conseguia libertar-se. O pecado em sonhar, querer mais; o pecado em ouvir uma bela música, em arriscar-se nos paços de alguma dança; em curtir um cinema, teatro, circo, parque, coisas de criança.

       Ao crescer, coube a mim a responsabilidade e, também, o direito de observar os caminhos e fazer as escolhas. De início, a vida parecia mais leve, mais bonita, cheia de opções. Agora era só viver! Entretanto, presa por as raízes que dominava todo o caule, senti a incapacidade de conduzir a vida com leveza e nobreza. Minha base revelou-se, mais do que nunca, meu algoz; inimigo forte que abatia sem piedade. Reconheci, finalmente, que mesmo fora das grades permanecia a mesma infeliz presa. Presa a conceitos; presa em mentiras ideológicas que foram incutidas em minha mente.

       Ao buscar o encontro com a diversão, entreguei-me a ela e logo fui ridicularizada; por eles, por mim. Ao tentar viver, perturbava-me por achar que estava infringindo as leis divinas, morais e familiares. Cedo me desconcertei, nunca me achei e deixei de viver. Mesmo quando nada era transgredido, sentia-me transgressora; minha mente me acusava; não se fazia necessário pecar, para sentir-me pecadora; fui treinada e enxergar pecado em tudo e, assim, ele passou a habitar dentro de mim.


Liliana Almeida
16 de outubro de 2013.