quarta-feira, 26 de março de 2014

O despertar de um cadáver

         Essa é a história de um cadáver. Tentarei desenrolá-la sem complicações, afinal, nem todo cadáver tem uma história, logo, quando um se sobressai no vale de ossos secos torna-se notório e alguém precisa registrar. Acompanhei tudo à espreita e tentei depurar alguns fatos que, à distância, pareciam emaranhados demais a muito entulho.

      Havia um cadáver que vagava lentamente entre indivíduos que, por falta de humanidade, assemelhavam-se a seres sem vida também. Ele caminhava sem recordação, sem memórias, sem identidade e, apesar de não ter um coração a pulsar, parecia inquieto, insatisfeito, mas resignava-se à sua condição. 

        Certa feita, em meio à sua falta de vida rotineira, ele depara-se com algo que viria mudar sua inexistência. Quando trilhava seus lentos passos em direção ao nada de costume, ele se enxergou através dos olhos de alguém que, parado, lhe olhava. Grande foi o choque e logo uma brusca perturbação tomou conta de si. Confuso, mas intensamente movido por sua inquietação, tratou de buscar conhecer o ser que lhe observara. Sua história começa a mudar aqui.

        É comum aos vivos invadir o terreno das emoções de alguém e transformá-lo conforme sua vontade e desejos sem, geralmente, importar-se com o que acontecerá à emoção sorrateada. Muitas vezes, o ser invadido não é nem notado, pois o que vem a ser prioridade é a necessidade do invasor que tem por sinônimo de identidade mau agouro. Por conseguinte, tal ação egoísta traz como resultado a desgraça de um caminhante inocente. Mas, como um cadáver tomaria ciência dessa realidade?

        E assim é que o amigo cadáver, conduzido por uma tamanha agitação foi ter com o ser que embaraçou seu ambiente sepulcral. Encantou-se com a novidade! Permitiu a si um processo que lhe traria uma metamorfose. Com estímulos e persistência o ser desconhecido, aquele que lhe cravara os olhos no seu olhar perdido, foi removendo as sujeiras e trazendo-lhe a vida. Com ela, a sensação, o entusiasmo, o desejo foram tomando conta de suas entranhas e, subitamente, sentiu que as correntes que prendiam o coração foram quebradas uma a uma; sentiu, no conjunto dos ossos, o coração pulsar e, de repente, sentiu amor. Sentiu a dor!

     Foi assim que aconteceu o despertar de um cadáver! Passou a ter ternura, dedicação e logo aprendeu a amar. Comprometeu-se com o amor e entregou-se ao ser amado. Cada batida do seu coração era como uma nota suave que harmonizava uma canção à amada; sua nova vida passou a ser expressão de amor àquela que lhe descobriu a raiz das emoções.

          Entretanto, é do humano a emoção efêmera; a insensibilidade que não permite materializar os bons sentimentos; a rigidez do coração que não sabe doar vez ao amor e, por ser assim, a amada partiu. Não disse adeus, não se despediu, não se fez entendida, não deixou nada a entender. Sumiu.

          Mergulhado nessa verdade atroz, o amigo que acabara de ser despertado sente-se arrebentado como as correntes que lhe prendia o coração. Sente amargar em seu âmago a ausência do ser amado e com o coração mais solitário que a lua no mar sombrio, lamenta ter sido despertado. Contemplativo percebeu que era melhor ser frio, não ter emoção, ser vazio. Concluiu que era melhor ser cadáver, mas compreendeu que era humano e a proximidade era incrível.





(Liliana Almeida)


4 comentários:

  1. Impressionante seus textos LIli! Sou seu fã hein!

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    1. Ai Adams Damas, muito obrigada!
      Fico imensamente envaidecida por tê-lo como fã... rs

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  2. Wow Lilica, sempre muito profunda em seus comentários, texto muito bem escrito. Parabéns!

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